sexta-feira, 24 de junho de 2011

Imprecisões

Ensinaram-me teorias. Como escrever exato e traçar movimentos previsíveis. O grafite desse lápis forma palavras desgastadas e expressões avulsas que querem ter a pretensão de abarcar a realidade do mundo, como se ele fosse quadrado e pudéssemos aplicar uma fórmula mágica e quase robótica para entendê-lo. E eu tenho escrito muito, muitas coisas inúteis e desinteressantes, que não prestam para dar cabo às doces mentiras que forjam essa existência assimétrica. Disseram que é necessário também um método, um procedimento, uma maneira precisa de apreender o impossível. Explicaram que é feio ser incoerente, vago, superficial, e a olhar o céu como se nele não estivesse refletido o passar demorado das horas e como se as pessoas não se desencontrassem através de labirintos infinitos. Me pediram para esquecer esse negócio de melancolia, porque é coisa de gente estranha, e que para se ser feliz é preciso olhar para frente, ignorar e esquecer o passado e esperar sentado que o futuro surja por detrás de uma porta da alma, nos pegue no colo e leve para não sei onde.

Não posso. Largo tudo isso e fico quieto num quarto de paredes brancas, mas de aspecto abjeto, os olhos cerrados para me enxergar, com quadros espalhados por todos os lados e que lêem meus pensamentos. Extravio de mim mesmo para saber apreciar minha ignorância: não me venham com significados prontos e conceitos estabelecidos, com intelectualidades definidas e citações gregas! As raspas de minhas resiliências absolutas não são tão simples de serem encontradas assim. Prefiro estar só, afogado até as narinas com as minhas dúvidas manchadas, com minha saudade abstrata, com meus sonhos inalcançáveis. Serei mais feliz se não encontrar respostas precisas, resultados evidentes. Derrame álcool em minha bebida amarga, tire da minha frente esses livros empoeirados e deixe que encoste devagar a cabeça sobre o travesseiro macio. E que a volta de um relógio seja tão duradoura quanto à ressaca da vida.

Existo não para ser o que quero, mas para evitar os contornos agudos de tudo o quanto neguei. Mas vou errado, reto sigo pelo percurso que deveria ser meandrante.

Não tem importância. Se importante fosse, teriam me ensinado, mesmo que as avessas.

domingo, 12 de junho de 2011

Resquícios de ninguém

Ouvi baterem à porta. Não recordo se era quarta ou domingo, mas não importa porque os dias são sempre iguais e eu estava bêbado. Talvez fosse sábado. Mas lembro o quanto lamentei ao notar que me tiravam cedo de meu falso sossego, de meu estar afundado em devaneios e em pesadelos rotineiros, em meu abrigo retalhado por panos molhados. Desperto, sentei-me no sofá. Algo invisível rodopiava a minha volta e havia pigmentos na transparência do ar, como se tivesse ocorrido um incêndio por perto, ou houvesse alguém à fumar ao meu lado. Tive a sutil sensação de estar ainda dormindo, agindo em um sonho alheio a mim. Levantei sem saber ao certo por que, mas lembrei logo em seguida, pois soara uma vez mais o toque na porta. Caminhei a passos vagos até a maçaneta, com um embrulho mortal no estômago e uma vontade terrível de mudar de direção e atirar-me da janela entreaberta. Mas que sentido faz matar-se quando existe alguém batendo em sua porta?

Tropecei na desordem da sala, em rabiscos amassados e rascunhos cansados e prolixos. A garrafa de vinho, aberta e pela metade, ainda jazia sobre a mesa quebrada; peguei-a e dei dois longos goles, um para matar o desassossego de ter levantado de repente, e outro para querer esquecer que nessa vida nada tem solução. Era amargo respirar, como uma asfixia incurável, um descarrilar dos sentidos todos. Espreitado, o tormento cumprimentava-me, debruçando-se em todas as estreitezas daquele espaço, escondido por debaixo das tábuas de madeira podre, atrás das cadeiras carcomidas pelo tempo, através dos corredores mal iluminados, entre o ranger das venezianas descascadas. Com a visão periférica, percebi que achava graça da forma pela qual a loucura tomava conta de meus gestos inacabados.

Epifanias eram raras ali. Um relógio, pregado parcamente ao lado de um espelho rachado e que refletia o desatino da saudade, parecia estático com seus ponteiros mudos e preguiçosos, fazendo aumentar o desalento das badaladas intermináveis que teimam em não andar. O velho ventilador de teto, sem ritmo e barulhento, esforçava-se para romper o silêncio do ar rarefeito, mas só fazia multiplicar o mormaço que se estendia pelos lados das paredes mofadas. Via-se que o sol não dava trégua lá fora, massacrava os transeuntes sem compaixão. Mesmo assim, uma massa de ar fria e quase úmida me envolvia: as estações do ano são confusas e engasga meu peito esfacelado de pedra oca.

(Em um passado que se perdeu por lassidão, podia me enxergar por completo: foi-se o tempo em que sabia me encontrar nas esquinas de mim mesmo; hoje, ao curvar-me colocando meus tênis furados sabendo que sairei de casa, me esqueço, não sinto, quase sou, e não há coordenada geográfica que me dê um ponto exato, uma realidade sã, uma explicação absoluta ou nítida sobre qualquer coisa. Desdobro-me para deixar no fundo da gaveta o desencanto de dias passados e afogar minha misantropia em uma viela chuvosa; na verdade, os dias abrem-se ensolarados: os únicos escuros que vejo, estão em mim. Lá fora, tudo me sufoca com um tumulto de incertezas concretas, de expressões exaustas, de pesares que nunca foram, de flores murchas e estilhaçadas. Antes, aproximava-me do parapeito de cabeça erguida, e adiante enxergava uma fatia do céu encontrando a terra no horizonte, onde descansavam tranquilos os meus desejos possíveis. E mesmo as sombras gélidas do conjunto de concreto cinza, a circulação impaciente de pessoas lá embaixo, os diálogos que tomavam forma, a desilusão daqueles que iam sozinhos e pensativos, tudo isso coabitava as minhas percepções dentro de uma lógica razoável e existir era como sentir pela metade. Mas ao decorrer do meu trajeto pelos dias, tornava-se pequeno o parapeito, o céu e a terra não se falavam mais, o concreto me oprimia e as conversas eram barulhos desarmônicos.
Construí, para atravessar minhas próprias avenidas, pontes incertas e frágeis, fincadas sobre pontos cegos, cercadas por postes de luzes opacas e formas imprecisas, as quais só pude perceber através de telescópios da alma, de silhuetas enegrecidas. Tornei-me outro quando me perdi, porque o rumo errado que tracei destinou-me diálogos ininteligíveis com pessoas desconhecidas, vi objetos gelatinosos e imateriais, ouvi palavras em outra língua que não a minha, sinestesias formaram labirintos para os meus sentidos. E não houve bússola que me desse o norte para retomar o caminho que originalmente pensei seguir).

Foi de mão dada com essas imagens tortas e descontínuas, com essas figuras de um devir que nunca chega, de um futuro que se divorcia do passado sem avisar, que fui girar a chave, e transpassaram pela minha mente divergente, em um segundo eterno, todas as elucubrações da vida. Esse esforço para movimentar minha massa corpórea depreendeu de mim uma força colossal, quase desumana, e lembrei sem notar de Sísifo e sua pedra, como se toda condição humana dependesse de movimentos breves. Minha cabeça latejava, meus olhos ardiam, meus membros pediam descanso. Mas batiam novamente à porta, e percebi que só naquele momento despertara definitivamente: até aquele instante, era uma espécie de sonâmbulo consciente, assim como as pessoas que, desatentas, trafegam pelas ruas sem notar que a solidão se camufla entre a desordem.


Continua..