sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ecos de outrora

Ecos de outras eras me afogam e oprimem. Quando soam, assemelham-se a sussurros roucos e incoerentes, enredos tortos para os meus sintomas desacostumados a agitações externas. Mas quando me quieto e atento para eles, percebo que formam mantras que retumbam dentro do meu peito, pisando por sobre pequenas feridas que cicatrizaram pela metade. Parecem querer alertar-me de que estou sem prumo, isolado e desconexo em meio à multidão cinza e moribunda que me acerca. No cerne de seus lamentos e repetições, querem entender como cheguei ao ponto em que estou. Todos eles, suplicantes e magoados tais quais um fado português, são resquícios semimortos, episódios conturbados, avisos de meus desencontros. E os capto feito desilusões de períodos que não presenciei, como sonhos desmanchados de frias madrugadas. Com o intuito de não escutá-los, cubro os ouvidos, mas assim acabo por aguçar outros sentidos e enxergo mais do que deveria. Observo que estão fechadas as cortinas ao fundo e o vento não derrama mais sua ira sobre os espaços. Na penumbra lúgubre, objetos modificam seu lugar de origem, dançando trôpegos diante dos reflexos da escassa luz, mesmo sabendo eu que são consequências de minhas incertas retinas. Fragmentos incolores saturam minhas vistas, aqui dentro faz calor e é difícil sossegar. Recostado, entorno mais um sujo copo do amargo Fernet, que desliza pela garganta assolando as amígdalas: o mal estar já se instalou no estômago e preciso do álcool para sará-lo. E apenas os ecos continuam, adentrando minha precária privacidade e pregando-me à cadeira sem forro. No meio deles, arrisco meia dúzia de frases ordinárias, ditados conhecidos, letras imprecisas que desalinham e borram as sensações. Volto à atenção para a mesa rachada, lembranças efêmeras e faces conhecidas me atravessam, mas com elas não sei fazer poesia e sentir isso chega-me, ao seu modo, meio sem vida. Pro diabo com tudo isso! Não se pode dar vazão a nenhum pensamento nesse ambiente torturante! Deixo de lado papéis e evidentes loucuras, procurando encharcar esses imaginários sons com doses de tempos longínquos. E então, somo esforços para recordar quando foi a última vez em que vislumbrei fagulhas de significados, mesmo que por poucos segundos. Quando que, despreocupado e vacilante, estive a caminhar sem que acompanhasse-me a penúria dos dias sem volta? Não sei dizer, porque segundos e dias assim são como pergaminhos esquecidos na confusão da qual não sei escapar ou resistir. Ajuízo, por último, como é curioso o fato de nossas vagas escolhas se parecerem tanto com passos na areia, à beira mar: o formato dos pés finca na areia, desenhando o nosso passado. O mar, em sua grandeza inocente, brinca de desfazer, deformar e entortar a pisada original. Resta disso o que ponderamos compreender de nós mesmos.  E o mar avança, apaga o nosso trajeto, transmutando tudo na saudade do que de nós projetamos. Saudade do que não existiu, mas que queríamos, por uma inspiração divina ou uma danação de não sei onde, crer que sim.


"...procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada" 
Graciliano Ramos - Angústia


"Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar"

Cartola