sábado, 31 de dezembro de 2011

Refazendo primaveras

Quando quis saber de mim, através do ponto cego das tuas intenções obscurecidas, já era doido de nascença e estrangeiro de lugares outros. Nos meus resquícios empoeirados que resguardam contos invisíveis, nos meus lugares sagrados que abrigam pedaços oníricos de mim, nas paredes rabiscadas das profundezas desses breus, existiam sempre ondas de incertezas e espasmos de sinceridades indizíveis, e eu rodopiava por sobre vãos rarefeitos. Atarantado pelo sincronismo disforme de uma vida antagônica, como se estivessem segredados todo e qualquer mistério do que quis ser no póstumo, que é agora presente, esqueci-me de arrancar o revestimento que encobria a película das sutilezas e me restou uma atroz carcaça que me reveste de algo que não sou.
Mas não me importei nunca com o devir ou o agora, nem com as fúrias das tempestades ou com os infortúnios do tédio e a reverberante espera. E pouco me interessam esses livros que quase nada me ensinam, a busca pela erudição e entendimento das coisas e do mundo ou o estudo da situação política e econômica do país: toda explicação escancara as portas para novas dúvidas e andamos em círculos, bêbados, toda vez que uma estrada termina e uma outra se inicia. Se ocupo minhas horas a pensar nesses aspectos inacabados e imprecisos da existência, é pelo simples e vago motivo de não saber suportar, lidar, viver com a celeridade dos acontecimentos e com as renúncias do esquecimento a qual estou submetido, num balançar constante e iminente que me empurra a passos largos à loucura de não lhe pertencer; dada a impossibilidade de satisfazer suas lacunas com as metades utilizáveis de mim, gasto meus instantes com pensamentos desinteressantes e fúteis. 
Palpita em meus ouvidos canções desarmônicas, ao sabor ilógico de um diapasão desafinado. Fulguram em minhas retinas imagens de sonhos desconhecidos, paisagens faustuosas se desenham e as absorvo quase reais e perfeitas. Contudo, em nenhuma delas você está e isso me desassossega como o maior dos pesadelos, como a mais terrível e amarga mancha do inalcançável. A cabeça inclinada para trás, olhos cerrados: e já não é mais a sua figura que se forma no fundo de minha mente. É outra coisa. É a certeza absurda e vã de não vislumbrar fugas ou caminhos ou resoluções para esses labirintos tortos e cegos que inventei, esses lacres imunes aos encantos que forjamos só nossos. 
E ao fim dessa pobre retórica que nada tem de novidade, abandono esses ocos apontamentos, pois já desanuviei a inquietação de sentir. Dormente e alheio, pressinto os dilacerantes nevoeiros que me aguardam. Mas prefiro ser louco e andar sem asserção, afastado dos domínios que não são meus, dos juízos que refaço a cada primavera.
"Dá-me mais vinho, porque a vida é nada" Fernando Pessoa

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sobre o intangível

Enquanto encarava a mala disformemente atirada no canto obtuso e sujo da rodoviária, os olhos fixos nela, como que para relembrar mentalmente todos os inúteis objetos que ali dentro atirara meia hora antes, desenvolvia calado e para mim a estúpida ideia que todo vagabundo possui mesmo sem saber, a qual descrevo abaixo. Como disse, é estúpida e não merece ser lida nem por quem a desenrola. Ao mesmo tempo, ressurge na memória sem esforço ou necessidade e se escrevo-a é para esquecê-la:

Tenho uma teoria. Falha, é verdade, mas ainda assim é de se pensar: Um homem deve viver bem se estiver ao seu alcance um pedaço de pão, um vinho vagabundo ou uma dúzia de cervejas baratas, alguns amores e umas poesias soltas. Mais do que isso é exagero e vaidade, e esse mundo já está entupido disso. (E é com melancolia que recordo nesse instante: nenhum desses itens há na mala. Merda!). O dinheiro é escasso e o pão está caro demais - deve ser culpa da inflação. Sempre é. Mas um vinho de baixa qualidade e umas cervejas de sabor duvidoso sempre nos acolhem nas tabernas dessas solitárias ruas. Todos dizem e é mesmo verdade: incrível como o álcool torna algumas pessoas sociáveis, despreocupadas com o ingrato peso da realidade, talvez. Outras, porém, nem com grandes quantidades de fada verde, companheira da genialidade dos loucos boêmios desde tempos imemoriáveis, conseguem respirar aliviadas por deixarem de lado a sensatez. Notei ao longo desses anos que muito discernimento e razão, equilíbrio e raciocínio lógico tornam as pessoas rapidamente enfadonhas e pessimistas, burocráticas e infelizes, até com quem não merece ser tratado assim. É por isso que eu venero a loucura, os exageros e os palavrões. E prefiro que o bom senso seja deixado de lado, porque é geralmente nessas condições que as melhores risadas são dadas, que as maiores histórias são contadas, que as mais saudosas recordações são guardadas.
Que seria das relações sociais, dos infortúnios causados por celebrações tediosas, seja ela de qualquer espécie, sem a presença do álcool, na companhia de boas parcelas de hipocrisia? Verdades incertas e nada mais que isso! Hipocrisia, aliás, como pronunciou certa vez um amigo, é a maior das diplomacias. O que me leva a concluir, com um meio sorriso no canto dos lábios, que só se faz diplomacia de verdade com boas doses de bebida alcoólica no sangue. 


Quanto a poesia é ainda mais fácil. Algo escrito numa rocha já gasta, uma folha que se desprende do caderno de uma menina sonhadora, a orelha de um livro antigo ou rasgado, o estar a ouvir o vento assoviar pela janela de prosas inacabadas, e pronto: tem-se material suficiente para que se reflita taciturno sobre uma porção de questões pertinentes há existência. E matar o tempo assim é como deixar um legado para a eternidade, mesmo que ninguém ao redor se importe, saiba ou sinta, como de fato normalmente ocorre. O verso pode ser frouxo, desandar em rimas pobres ou mesmo serem palavras do Paulo Coelho: expiações sempre  nos fazem encontrar uma fresta de significado no oceano das incoerências.

Só quem vai para longe ver o sol nascer em horizontes de outrem é que pode se ver livre por alguns momentos da sujeira, do cansaço, da repetição, da pressão de ser alguém. Quem vê menos prédio e mais plantação, menos concreto e mais abstração, provavelmente é mais feliz. E é justamente quando se encontram as chamadas meias verdades, já fatigadas de doces desilusões. O destino se ri de nós por não sabermos nos afundar em profundas e profusas horas de silêncio e por querermos ser mais inteligentes que o tempo, único entendedor da orientação exata dos caminhos desconexos. Epifanias, esperanças ou coisa que o valha, só se alcançam pelos fugidios segundos dos ponteiros, impossíveis de serem duradouros e absolutos.

Como sempre, quem tem razão é o gênio Fernando Pessoa, sob a luz da poética quase pagã e ao mesmo tempo divina de seu heterônimo Ricardo Reis, ao dizer, com sua costumeira simplicidade esclarecedora: 

"Segue o teu destino, rega as tuas plantas, ama as tuas rosas. O resto é a sombra de árvores alheias. 
A realidade sempre é mais ou menos do que nós queremos. Só nós somos sempre iguais a nós-próprios." – perfeito e preciso como o pôr do sol depois do dilúvio.

E tem também os amores. Os amores. Mas esses não se pode prever, querer ou buscar. Surgem sem que se perceba, sem que se saiba ao certo por qual estrada seguirá, assim como os vales por entre montanhas. E se perdem despercebidos, como folhas ressecadas no quintal da casa velha. Imprevisível por essência, nos tira do sossego quando queremos esquecer e nos põe no delírio quando precisamos de descanso. Nos arranca o juízo e nos faz sair da linha. Mas o outro ângulo, aquele que enxergo apenas de supetão através de instantes vencidos e que mostra a mesma face da moeda já enferrujada, faz o mundo parecer pouco e pequeno, os problemas uma poeira na imensidão e a vida um lampejo breve e inesquecível.

Em verdade, nunca vi essa face, ou se quis ver estava cego. Em verdade, foi com melancolia e pesar que descobri que amar alguém pode não significar nada nessa vida. Porque geralmente as horas em que o mais belo pensamento recosta na breve lembrança dos sinais quase escondidos, transcorrem alhures aos desejos suprimidos e imediatos. E pode até ser bonito ou romântico que seja assim, mas apenas em fantasias infantis ou nessas histórias modernas de vampiros. Na vida real, essa em que a inquietação fala mais alto do que a pureza dos sorrisos, ninguém se importa muito. Há algum tempo, quando a escassez sórdida e a sutil ingratidão dos amores começaram a assolar, escrevi num guardanapo de bar um verso que até então não compreendia bem, mas agora relembrando talvez se encaixe nesses devaneios:

eu fui embora, mas não parti,
metade do que disse escondi.
agora apenas me calo, 
no melancólico sopro do teu hiato.

(Você me diz que precisa de colo quando está sozinha e que prefere estar só quando te ofereço o meu perdão. Acho que é por isso que eu gosto mesmo é de não te encontrar, só para me embriagar sem culpa, reclamar de tudo e escrever sobre o que quiser. Não como resposta, mas para esquecer; não para ter razão, mas para apaziguar o coração).

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Para esquecer desatinos

Nesses desconcertos sem arranjados já não há mais o que sentir ou pulsar:
só o silêncio dos ecos de romarias distantes se fazem notar.
Existe ali, onde termina o caminho deflorado dos meus amores,
a esperança incerta e bêbada do porvir sem cores.

E me circundam torpores e consternações, metades e tormentos, lamúrias e equívocos que se cruzam e se embaraçam com finais meus e restos teus, com vontades minhas, suspiros teus. É por isso que apenas lhe sonho, figura inacessível de desejos descabidos. Se fosse realidade, não seria essa poesia ininteligível e contrária, nem mesmo uma prosa com cadência bela. Se fosse realidade, estaria só e pelo avesso, vagando em ruas de mão única, e não abrigada no fruto de minha pueril fantasia.
Mas para além de mim não há nada que se possa fazer presente. Navego por entre correntezas e pelos vácuos dos meus descompassos. Me abstenho de alegrias, espectro efêmero e alheio, e sorrio para a insanidade de quase ser. Perco no horizonte essa faísca repentina que se convém denominar felicidade: bebo e fumo meus maços e isso me parece como a plenitude branca das nuvens.

Violão desafinado, livros rasurados e páginas marcadas, manchas frias pelo gasto assoalho; E é tudo para aparentar esquecer meus cansaços quando me deito ao teu lado.

Naquela manhã de domingo que só nasceu para mim, você despediu-se e levou o que de mais secreto havia nos meus recantos. E desde então eu endoideço a procurar-te para saber dos teus fins, secar tuas lágrimas, entender teus rogos e sorrir para as tuas tortas razões. Mas os desatinos não somem e os delírios não desgarram. Ficam assim, pairando entre o eu incompleto e a suposta luz que és tu.

domingo, 9 de outubro de 2011

Contornos

Dolorido, apertado e esquecido. Meu peito abriga um coração que suplica por instantes de paz, por fagulhas de sentido, por brechas de entendimento.
Confusão, descontrole e amargura. Minhas lembranças clamam para serem apagadas, lamentam o negrume sólido que concreta as emoções passadas. Fazem uma espécie de oração calada, uma prece angustiada, para que suma da memória as ilusões que transformei em verdades, já que os bons momentos jamais foram divididos: foram eles meus e de mais ninguém. 
Levei a eternidade para perceber que o amor, essa pequena palavra que sopramos ao alento toda vez que a pulsação acelera mais do que deveria, tem caminhos tortuosos, regras complexas, palavras dúbias, necessidades que não sei compreender. Egoísta que sou, vi os outonos sucumbirem às tentações de devastadoras paixões e dei adeus para esperanças que enchiam-se de promessas vazias. Mas segui sempre pelos varados trilhos que construí por esses curiosos percursos.
Vejo-me sozinho, no meio do furacão e dentro de tempestades que criei, feito uma criança que tenta saber por que desaba o mundo a sua volta. Mas em minhas terminações suprimidas, nos interstícios sonolentos onde prevejo um pedaço de devaneio sem alma, haverá sempre a insônia e olhos fatigados por tentarem enxergar o incompreensível. Nas bordas de cada rio, nos contornos de todos os lugares idealizados, nas margens dos nossos desapegos ou nos bares dos nossos afogamentos, haverá sempre uma fatia de mim. E de você.

“Sou muito sozinho. Tenho todos comigo, e ao mesmo tempo, ninguém.
Adaptado de Camila Depane

“Ah, quem me salvará de existir?”
Bernardo Soares, em “Livro do Desassossego” 

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

"Já lhe dei meu corpo
Minha alegria
Já estanquei meu sangue
Quando fervia
(...)
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa"


Chico Buarque - Gota d'água
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"Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças
(...)
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde."


Chico Buarque - Trocando em miúdos

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

O amanhã que é hoje e não chega.

Amanhã talvez. Mas hoje até o respirar está pelo avesso e minhas certezas divorciam-se de mim mesmo como esboço oblíquo de escritas tristes e linhas diagonais que cruzam minha quietude: lido com esmiúça da cabeça aos pés por olhos turvos de ninguém. As veredas têm sido continuamente sem destino acertado, circunscritas por diálogos incompreensíveis, ciúmes forjados, promessas impossíveis. Os que vão comigo jamais cruzam minhas chegadas. Deixam-me sempre seus bocados, suas metades apagadas, suas sobras quebradas, seus amores desfeitos. É então que findam os sorrisos fáceis, ficam pelo caminho as confissões íntimas e desmancha-se a esmo a felicidade nossa.

Apenas amanhã. Hoje estou excessivamente cansado, impaciente e pessimista  para querer que a minha existência seja diferente. É uma fadiga absurda a que é submetida meus músculos, membros e cérebro. Exausto, não penso: duro, assim como as árvores que resistem às alvoradas. E observo atônito os dias passarem como se fossem vidraças maculadas de ansiedade e mentira. Sem que o saiba, sem que o creia e sem que o chore, a penumbra da desesperança já vai surgindo atrás das luzes opacas e me cobre no canto escuro do quarto sem paredes. É sem saber por que respiro que sigo, cambaleio sobre uma corda bamba e perco o equilíbrio quando me fazem discursar quando necessito calar.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Lampejo nas sombras

Prelúdio das ocasiões, sobejo das horas.
A disposição dos antigos objetos dessa sala sem paixões, me dizem provérbios e frases bonitas que eu não entendo ao certo o que significam. E nem busco compreender. Para acomodar-me em doces fantasias, deito fora o tempo e aquilo o que não cabe mais em mim e nem no mundo, as mazelas estampadas nesses retratos sem molduras: e tudo é para respirar por entre realidades dissimuladas, sentir abreviar esses batimentos sem razões, ver fugir por buracos inexistentes o que impregnado já está no espectro. Surge no pano de fundo amarelecido da minha triste vida, aquelas frustrações que não somem, nem dormem, não se escondem.
Letargia vaga do inexplicável, desatino dolorido que ofusca as retinas, sombras e sobras de meus desapontamentos. Ergue-se um vidro diáfano entre o que me forma e o ideal, constrói-se um muro entre o plausível e o impossível, anseios inomináveis acercam-se entre mim e ti: avisto-te apenas por alegorias tortas, por fatos contestáveis, maneiras imprecisas. A saudade, quando transvestida de angústia, nubla aqueles temporários instantes em que nos esquecíamos de nós mesmos, onde passado não havia e o futuro era imensurável. Agora venta em mim, como confissões de tempestades atemporais, a bebedeira hesitante de todas as eras. E meu peito silencia desgostoso para me lembrar que você não está.
Contudo, não existo. Estou. Só percebo aquilo que não presencio e não almejo nada a não ser uma praça onde se possa sentar num banco de madeira envelhecida, ficar a meditar sobre o céu e vê-lo por azul no outono, com um lago límpido à frente e um sopro manso para acalentar abraços que se despedem. E eu finjo ser poeta do que não sei, amar o que não possuo e dar vida a enleios fugidios.

Entorno no ar pensamentos soltos e essas palavras são para comprovar a incoerência das minhas sensações.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Licença (des)poética

Jamais houve inspiração,
explicação.
Subtraio-me sem compreender-me.
E é na solitude que quase vivo,
para olvidar o seu sorriso,
desembaraçar a vastidão.

Na resplandecência,
efêmera em sua essência,
duro apenas por frações
e fatias de sabedoria,
minúsculas razões
que não apartam nostalgias.

Vou para varanda de meus abandonos
gritar a minha alma:
ninguém ouve o desvario de acamados desconsolos,
o fim de uma abstinência calada.

Sangro toda imundice amontoada das ruas,
dói-me as feições amargas e mudas.
E isso me bate sem perdão, sacode
feito pingos d’água na madrugada quando chove.

O resto, migalhas do espelho que se esfacela, são (re)versos do iniludível.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

"É preciso estar sempre embriagado. Isso é tudo: é a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que lhe quebra os ombros e o curva para o chão, é preciso embriagar-se sem perdão.
Mas de que? De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser. Mas embriague-se.
E se às vezes, nos degraus de um palácio, na grama verde de um fosso, na solidão triste do seu quarto, você acorda, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, pergunte ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, pergunte que horas são e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio lhe responderão: "É hora de embriagar-se! Para não ser o escravo mártir do Tempo, embriague-se; embriague-se sem parar! De vinho, de poesia ou de virtude, como quiser."

Charles Baudelaire

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Vida inversa e amores

A vida está inversa e os amores se cansaram. As mesmas carências e vontades, os mesmos temores. Estou partido ao meio, avulso ao vento. E meu coração é um trapo antigo, como aqueles que se deixam no rodapé da porta para que não entre água e poeira por baixo. O corpo padece, suporta sozinho uma carga descomunal. Minhas impressões, restos de mim, deixam marcas incuráveis em meu rosto e cicatrizes pontiagudas em minha alma: já não posso mais deslembrá-las, afogá-las no vácuo impreciso da esperança. A vida está inversa e os amores, indiferentes. Não há diálogo, nem gestos e o silêncio adoece. Emudeço dentro de mim mesmo, como um disco riscado a rodar infinitamente numa vitrola sem agulha. O conflito dormente que saí das entranhas, desgosto acumulado do que não soube ser, névoa translúcida de emoções imperfeitas, abrolha e sucumbe, desassossega até a última gota. Alheio, aglomerando quimeras e vendo tudo passar do lado de fora, estou eu sentado à janela de enganos desrazoáveis. E já não há mais amores, nem vida e nem réplicas.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Sobre o quase

Ansiedades veladas

Confusões caladas

Amarguras insensatas.

E eu respiro por osmose,

Multiplicando as somas de vácuos, espaços, buracos,

Como se a sombra do último minuto, acolhida por respingos de arrependimentos,

Projetasse sobre o nada tudo aquilo o que quase posso oferecer.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Em tempos quis o mundo inteiro.

Em tempos quis o mundo inteiro.
Era criança e havia amar.
Hoje sou lúcido e estrangeiro.
(Acabarei por não pensar.)

A quem o mundo não bastava,
(Porque depois não bastaria)
E a alma era um céu, e havia lava
Dos vulcões do que eu não sabia,

Basta hoje o dia não ser feio,
Haver brisa que em sombras flui,
Nem se perder de todo o enleio
De ter sido quem nunca fui.

Fernando Pessoa

....

Lembro-me bem do seu olhar.

Lembro-me bem do seu olhar.
Ele atravessa ainda a minha alma,
Como um risco de fogo na noite.
Lembro-me bem do seu olhar. O resto...
Sim o resto parece-se apenas com a vida.

Ontem, passei nas ruas como qualquer pessoa.
Olhei para as montras despreocupadamente
E não encontrei amigos com quem falar.
De repente vi que estava triste, mortalmente triste,
Tão triste que me pareceu que me seria impossível
Viver amanhã, não porque morresse ou me matasse,
Mas porque seria impossível viver amanhã e mais nada.

Fumo, sonho, recostado na poltrona. Dói-me viver como uma posição incómoda.
Deve haver ilhas lá para o sul das coisas
Onde sofrer seja uma coisa mais suave,
Onde viver custe menos ao pensamento,
E onde a gente possa fechar os olhos e adormecer ao sol
E acordar sem ter que pensar em responsabilidades sociais
Nem no dia do mês ou da semana que é hoje.

Abrigo no peito, como a um inimigo que temo ofender,
Um coração exageradamente espontâneo,
Que sente tudo o que eu sonho como se fosse real,
Que bate com o pé a melodia das canções que o meu pensamento canta,
Canções tristes, como as ruas estreitas quando chove.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Desenquadrado

Deitado e sem a placidez do sono, imagens desconexas e ofuscadas insistem em frequentar os vãos profundos da minha angústia. Formam um mundo que não ocupo, retratam uma estrada que nunca estive, revelam paisagens que nunca vi. Figuras embriagadas, simulacros inventados e lapsos de uma paz inexistente duelam por sobre a abstrusa mente que já não sabe diferenciar fato de ficção, desejo de necessidade, paixão de vaidade, abismo de deserto. Quando finalmente há sossego em meio ao tormento, depois de eternos desacordos da serenidade, já não sei mais se estou sonhando ou se criei, para suportar este fardo à qual chamamos realidade, um lugar onde possa sorrir através de frivolidades do coração. Sussurros noturnos, pulsações nas têmporas, resfôlego desacertado: e o dia nasce como se nunca tivesse morrido.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Imprecisões

Ensinaram-me teorias. Como escrever exato e traçar movimentos previsíveis. O grafite desse lápis forma palavras desgastadas e expressões avulsas que querem ter a pretensão de abarcar a realidade do mundo, como se ele fosse quadrado e pudéssemos aplicar uma fórmula mágica e quase robótica para entendê-lo. E eu tenho escrito muito, muitas coisas inúteis e desinteressantes, que não prestam para dar cabo às doces mentiras que forjam essa existência assimétrica. Disseram que é necessário também um método, um procedimento, uma maneira precisa de apreender o impossível. Explicaram que é feio ser incoerente, vago, superficial, e a olhar o céu como se nele não estivesse refletido o passar demorado das horas e como se as pessoas não se desencontrassem através de labirintos infinitos. Me pediram para esquecer esse negócio de melancolia, porque é coisa de gente estranha, e que para se ser feliz é preciso olhar para frente, ignorar e esquecer o passado e esperar sentado que o futuro surja por detrás de uma porta da alma, nos pegue no colo e leve para não sei onde.

Não posso. Largo tudo isso e fico quieto num quarto de paredes brancas, mas de aspecto abjeto, os olhos cerrados para me enxergar, com quadros espalhados por todos os lados e que lêem meus pensamentos. Extravio de mim mesmo para saber apreciar minha ignorância: não me venham com significados prontos e conceitos estabelecidos, com intelectualidades definidas e citações gregas! As raspas de minhas resiliências absolutas não são tão simples de serem encontradas assim. Prefiro estar só, afogado até as narinas com as minhas dúvidas manchadas, com minha saudade abstrata, com meus sonhos inalcançáveis. Serei mais feliz se não encontrar respostas precisas, resultados evidentes. Derrame álcool em minha bebida amarga, tire da minha frente esses livros empoeirados e deixe que encoste devagar a cabeça sobre o travesseiro macio. E que a volta de um relógio seja tão duradoura quanto à ressaca da vida.

Existo não para ser o que quero, mas para evitar os contornos agudos de tudo o quanto neguei. Mas vou errado, reto sigo pelo percurso que deveria ser meandrante.

Não tem importância. Se importante fosse, teriam me ensinado, mesmo que as avessas.

domingo, 12 de junho de 2011

Resquícios de ninguém

Ouvi baterem à porta. Não recordo se era quarta ou domingo, mas não importa porque os dias são sempre iguais e eu estava bêbado. Talvez fosse sábado. Mas lembro o quanto lamentei ao notar que me tiravam cedo de meu falso sossego, de meu estar afundado em devaneios e em pesadelos rotineiros, em meu abrigo retalhado por panos molhados. Desperto, sentei-me no sofá. Algo invisível rodopiava a minha volta e havia pigmentos na transparência do ar, como se tivesse ocorrido um incêndio por perto, ou houvesse alguém à fumar ao meu lado. Tive a sutil sensação de estar ainda dormindo, agindo em um sonho alheio a mim. Levantei sem saber ao certo por que, mas lembrei logo em seguida, pois soara uma vez mais o toque na porta. Caminhei a passos vagos até a maçaneta, com um embrulho mortal no estômago e uma vontade terrível de mudar de direção e atirar-me da janela entreaberta. Mas que sentido faz matar-se quando existe alguém batendo em sua porta?

Tropecei na desordem da sala, em rabiscos amassados e rascunhos cansados e prolixos. A garrafa de vinho, aberta e pela metade, ainda jazia sobre a mesa quebrada; peguei-a e dei dois longos goles, um para matar o desassossego de ter levantado de repente, e outro para querer esquecer que nessa vida nada tem solução. Era amargo respirar, como uma asfixia incurável, um descarrilar dos sentidos todos. Espreitado, o tormento cumprimentava-me, debruçando-se em todas as estreitezas daquele espaço, escondido por debaixo das tábuas de madeira podre, atrás das cadeiras carcomidas pelo tempo, através dos corredores mal iluminados, entre o ranger das venezianas descascadas. Com a visão periférica, percebi que achava graça da forma pela qual a loucura tomava conta de meus gestos inacabados.

Epifanias eram raras ali. Um relógio, pregado parcamente ao lado de um espelho rachado e que refletia o desatino da saudade, parecia estático com seus ponteiros mudos e preguiçosos, fazendo aumentar o desalento das badaladas intermináveis que teimam em não andar. O velho ventilador de teto, sem ritmo e barulhento, esforçava-se para romper o silêncio do ar rarefeito, mas só fazia multiplicar o mormaço que se estendia pelos lados das paredes mofadas. Via-se que o sol não dava trégua lá fora, massacrava os transeuntes sem compaixão. Mesmo assim, uma massa de ar fria e quase úmida me envolvia: as estações do ano são confusas e engasga meu peito esfacelado de pedra oca.

(Em um passado que se perdeu por lassidão, podia me enxergar por completo: foi-se o tempo em que sabia me encontrar nas esquinas de mim mesmo; hoje, ao curvar-me colocando meus tênis furados sabendo que sairei de casa, me esqueço, não sinto, quase sou, e não há coordenada geográfica que me dê um ponto exato, uma realidade sã, uma explicação absoluta ou nítida sobre qualquer coisa. Desdobro-me para deixar no fundo da gaveta o desencanto de dias passados e afogar minha misantropia em uma viela chuvosa; na verdade, os dias abrem-se ensolarados: os únicos escuros que vejo, estão em mim. Lá fora, tudo me sufoca com um tumulto de incertezas concretas, de expressões exaustas, de pesares que nunca foram, de flores murchas e estilhaçadas. Antes, aproximava-me do parapeito de cabeça erguida, e adiante enxergava uma fatia do céu encontrando a terra no horizonte, onde descansavam tranquilos os meus desejos possíveis. E mesmo as sombras gélidas do conjunto de concreto cinza, a circulação impaciente de pessoas lá embaixo, os diálogos que tomavam forma, a desilusão daqueles que iam sozinhos e pensativos, tudo isso coabitava as minhas percepções dentro de uma lógica razoável e existir era como sentir pela metade. Mas ao decorrer do meu trajeto pelos dias, tornava-se pequeno o parapeito, o céu e a terra não se falavam mais, o concreto me oprimia e as conversas eram barulhos desarmônicos.
Construí, para atravessar minhas próprias avenidas, pontes incertas e frágeis, fincadas sobre pontos cegos, cercadas por postes de luzes opacas e formas imprecisas, as quais só pude perceber através de telescópios da alma, de silhuetas enegrecidas. Tornei-me outro quando me perdi, porque o rumo errado que tracei destinou-me diálogos ininteligíveis com pessoas desconhecidas, vi objetos gelatinosos e imateriais, ouvi palavras em outra língua que não a minha, sinestesias formaram labirintos para os meus sentidos. E não houve bússola que me desse o norte para retomar o caminho que originalmente pensei seguir).

Foi de mão dada com essas imagens tortas e descontínuas, com essas figuras de um devir que nunca chega, de um futuro que se divorcia do passado sem avisar, que fui girar a chave, e transpassaram pela minha mente divergente, em um segundo eterno, todas as elucubrações da vida. Esse esforço para movimentar minha massa corpórea depreendeu de mim uma força colossal, quase desumana, e lembrei sem notar de Sísifo e sua pedra, como se toda condição humana dependesse de movimentos breves. Minha cabeça latejava, meus olhos ardiam, meus membros pediam descanso. Mas batiam novamente à porta, e percebi que só naquele momento despertara definitivamente: até aquele instante, era uma espécie de sonâmbulo consciente, assim como as pessoas que, desatentas, trafegam pelas ruas sem notar que a solidão se camufla entre a desordem.


Continua..

terça-feira, 10 de maio de 2011

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Pouco antes olhava as nuvens, tão próximas e finitas que quase podia tocá-las de leve, como um grão de areia distante do mar, que espera ansioso o encostar brando das ondas. Os últimos raios solares se despediam, a noite caia e eu já não sabia por onde navegar. O tempo vem acompanhado de contornos de crueldade e não nos espera no meio-fio, nem perdoa nossas vontades infantis: desmorona rápido, cego e atabalhoado, delineando seu reflexo vindouro na eternidade. Dentro dele, desembocam todas as inevitáveis madrugadas, as quais somos obrigados a padecer. Mas a de hoje, a qual escrevo acompanhado da confusão silente de todas as formas, era particularmente diferente, sem que para isso precisasse se distinguir das outras todas. Paciente, fina, dilacerante, queria saber quais almas a ocupavam. Talvez tenha ficado com ciúmes ao perceber que pensavam demais na sutil imensidão acabada dessas nuvens vespertinas. Por isso, penetrou sem convite nas estradas, nos quarteirões, nos edifícios, nos escritórios, só para atormentar sentimentos acomodados, esticados sobre todos nós. Fez da calmaria tempestade, agora eu não sei mais o que é belo e o frio me incomoda. A lembrança fantasiosa de teus olhos, antes memória, recordação agudamente sentida, surge agora desfigurada e meu horizonte desaparece, desespera, se perde como se nunca tivesse existido, porque tudo o quanto és (ou a idéia que faço de ti) tornou-se pó através do breu fictício que nos habita.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Não vou ir.

Pra quê atravessar a rua, se esse lado é igual ao outro?
Se todo sorriso de criança e toda languidez mórbida que se encontram do outro lado, existem cá também, pra quê ir?
Se as manhãs são eternas, se as noites são geladas, se o vento derruba as folhas na primavera e a tempestade devasta os campos, aqui e do outro lado, me diz pra quê sair?
Se vemos construídas lá e cá todas as tabernas, igrejas, prostíbulos e cultos, que nos levam a glória e a perdição em um só tempo oco, pra quê mudar, eu lhe pergunto?
Se iremos cambalear por sobre certezas queimadas, olhando o passado com nostalgia e o futuro com medo, aqui e lá, pra quê fugir?
Se toda miséria e toda riqueza estão erradamente dispersas dos dois lados, pra quê mexer?
Se o ponteiro do relógio seguirá caminhando despreocupado e moroso através dos segundos, pra quê correr?
Se o marasmo dos penosos sonhos, das conjecturas infinitas, das decepções cortantes, extende-se em cores fúnebres tanto lá como cá, pra quê atravessar?
Não, por favor, não insista! Diga que sou mesquinho e ignorante, insulte-me se achar necessário, mas não insista! Deixe-me sumir dentro de mim mesmo, aqui onde estou, em meus movimentos retrógrados e na minha busca inútil e desesperada pela ataraxia desses dias demorados. E nem me venha com possibilidades! Ainda nem me acostumei a existir com o que tenho de concreto; como posso então mudar o que conheço apenas através de preâmbulos vazios?

domingo, 27 de março de 2011

No porão

As palavras fazem piada de mim. Elas se reúnem no meu subconsciente, rindo da minha imperícia em transformar pensamentos atropelados, que dormem acordados dentro do meu íntimo vazio, em sistemas matemáticos, em verdades indiscutíveis, em geometrias exatas. Por não saber deitar pragmatismo dentro do meu mundo camuflado, ando de cabeça baixa pelas ruas entupidas. E nos passos que dou, nas feições que quase capto, nas sombras que se multiplicam, nos sinais que não são meus, na saudade que se arrasta pelos becos, procuro talvez uma linha reta que me leve até a porta de alguma esperança que não seja passageira. Mas pelo trajeto que imagino seguir, tenho de desviar de mim mesmo, porque sou cheio de metades desfeitas e tropeço sem saber aonde. E quando o convívio diário me puxa de minhas percepções absortas, para ter de fingir para os outros que sou por inteiro, caio em vãos extensos, em buracos chafurdados, em maneiras interrompidas; papel picado e jogado com desleixo e desatenção é como configura-se minha existência. E por me encontrar só por frações pequenas, por realidades atravessadas, é como se cada um de meus sentimentos estivessem separados um dos outros e eu fosse obrigado a reuní-los para apanhar ao alento o que ainda me resta.
Mesmo que ninguém me veja de frente, é provável que muitos saibam que estampa-se em meus olhos, como carimbo gasto, tudo aquilo o que quis fazer de mim e não soube, todos os abraços demorados que queria dar e não dei. E talvez saibam também que estremeço apertado todas as vezes que poupo um sorriso, ou deixo de dizer um "eu te amo" para quem eu realmente amo. Por não saber fazer nada disso, é fácil reconhecer que estou triste se vou pelos lugares os quais não deveria estar. O que ninguém sabe, é que saí hoje de casa apenas com o meu corpo. A minha alma deixei guardada em um porão úmido e escuro, para que ela faça companhia para os meus demônios mais atordoados.
De qualquer forma, seria precipitação dizer que estou assim por culpa das palavras escondidas em minha mente. Ainda se elas escapassem e me inspirassem a fazer poesia, a dor de sentir seguiria ao meu lado, assim como um cão fiel que caminha ao pé de seu dono, aguçando a minha maneira deturpada de enxergar felicidades prontas. Para sentimentos endurecidos, palavras são apenas Buscopans fora da validade.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Desassossego!

"Acordei hoje muito cedo, num repente embrulhado, e ergui-me logo da cama, sob o estrangulamento de um tédio incompreensível. Nenhum sonho o havia causado; nenhuma realidade o poderia ter feito. Era um tédio absoluto e completo, mas fundado em qualquer coisa. No fundo obscuro da minha alma, invisíveis, forças desconhecidas travavam uma batalha em que meu ser era o solo, e todo eu tremia do embate incógnito. Uma náusea física da vida inteira nasceu com o meu despertar. Um horror a ter que viver ergueu-se comigo da cama. Tudo me pareceu oco e tive a impressão fria de que não há solução para problema algum. Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito latente. O meu coração batia como se soluçasse."

...

"Quantos somos! Quantos nos enganamos! Que mares soam em nós, na noite de sermos, pelas praias que nos sentimos nos alagamentos da emoção! Aquilo que se perdeu, aquilo que se deveria ter querido, aquilo que se obteve e satisfez por erro, o que amamos e perdemos e, depois de perder, vimos, amando por tê-lo perdido, que o não havíamos amado; o que julgávamos que pensávamos quando sentíamos; o que era uma memória e críamos que era uma emoção; e o mar todo, vindo lá, rumoroso e fresco, do grande fundo de toda a noite, a estuar fino na praia, no decurso noturno do meu passeio à beira-mar...
Quem sabe sequer o que pensa ou o que deseja? Quem sabe o que é para si-mesmo? Quantas coisas a música sugere e nos sabe bem que não possam ser! Quantas a noite recorda e choramos e não foram nunca! Como uma voz solta da paz deitada ao comprido, a enrolação da onda estoura e esfria e há um salivar audível pela praia invisível fora.
Quanto morro se sinto por tudo! Quanto sinto se assim vagueio, incorpóreo e humano, com o coração parado como uma praia, e todo o mar de tudo, na noite em que vivemos, batendo alto, chasco, e esfriase, no meu eterno passeio noturno à beira-mar!"

Bernardo Soares - O Livro do Desassossego.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Silêncio controverso

Quando o sopro lento balançou a cortina da janela e pude ver de relance a rua, eu sabia que você não estaria lá fora. Mas olhei assim mesmo, como que na expectativa vã de imaginar-te por inteira. Essa pequena cena se repetiu infinitas vezes durante vários anos, mas permaneci sempre inerte do lado de dentro, sentado numa poltrona vermelha desconfortável e usada, com minhas coisas velhas e incolores que eu nem gosto muito, um copo de conhaque barato por sobre a mesa e com o meu coração na mão. O resto do cenário, configurado por sombrios objetos desgastados, estava invisível pela penumbra reinante e pela atmosfera amorfa que circunscrevia todo aquele ínfimo ambiente sujo, mas que precisavam ali estar para que perambulassem ao meu redor as minhas amarguras pisoteadas.
Fiquei a lhe esperar nessas condições e nem passou pelos meus pensamentos imóveis e embaralhados que você me desprezaria se me visse naquele estado: estava com a barba a fazer, vestia mal a mesma roupa surrada de outrora e em meu semblante havia refletido um pesar indiscreto, consequência inegável de ocas noites em que passei revirando a minha necessidade de você; e por mais impossível que possa parecer, só podia entrever uma fagulha de alegria quando frequentavas, por um breve trecho, o meu sonho rasgado, que não soube terminar porque acordei assustado ao ver seu reflexo sumir devagar dentro de meus delírios noturnos. Respirava ofegante, provavelmente por consequência de algum problema grave de saúde. Todo o meu ser respingava uma forma aguda de hipocondria seca e iminente, uma tentativa frustrada de afogar o descompasso de meus instantes compartimentados.
Segui assim por mais tempo do que gostaria, mas acho que com o tempo, acabamos mesmo por nos acostumar até com o nosso próprio sofrimento, talvez pela inércia de existir ou pela sonolência dos cansaços enclausurados. Ele se torna frequente, quase como um companheiro indesejado nos minutos inconvenientes, presente quando a solidão chega esparramada sem sobreaviso na escuridão da sala (sempre considerei curioso o fato de não conseguirmos suportar a convivência com certas pessoas, às vezes sem nenhum motivo aparente, e, pelo contrário, sabermos muito bem aguentar nossas dores, em grande parte dos casos oriundas e baseadas em nossas próprias dúvidas infundadas.)
Todas essas circunstâncias, que teimam em envolver os cantos onde estou, poderiam apresentar-se de maneira diferente e eu sairia daqui de dentro, iria sem rumo, sem meditações obscuras e expressões escondidas. Tropeçaria nas ruas sem preocupação, para sorrir sem motivo específico, nadar no abismo profundo da felicidade mundana, encontrar um camarada por essas estradas perdidas e embebedar-me. E então, ir flanar por aí a procura de qualquer distração irrisória, deixando de vez essa mania pavorosa de viver para dentro, como em uma casca dura, na qual só se pode vislumbrar a superfície das emoções. Porque até o mais taciturno e melancólico espírito pode fazer isso por vezes, até com certa frequência.
Mas de volta a casa, à poltrona, ao sofrimento, você não estaria ao meu lado, nem do lado de fora, em nenhum lugar, para me dizer qualquer palavra ou sinalizar apressada que vale a pena seguir adiante, apesar de tudo. Não. Eu continuarei a aprender a suportar a minha vida, que se derrama vagarosa sobre o meu entorpecimento agônico;



Eu só posso reconhecer-me ao te ver chegar. Mas só consigo me entender ao te ver sair pela mesma porta que abri para que caminhasse em minha direção.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Tarde

Foi numa tarde de sol estridente que me assaltou à idéia de que paira sobre a atmosfera que respiro, um dissabor amargo de alguma coisa que ninguém sabe o que é. Um peso invisível abatia meu peito e um desgosto vacilante, que surge nas horas inacabadas dos dias incompletos, ameaçava incessantemente tomar contada da minha mente, dilacerar minhas vísceras, escurecer minhas vistas. Perambulava sem rumo, apenas para balançar essas apreensões covardes de dentro de mim e fazer o medo espalhar-se pelo meu corpo, chegar aos meus braços, as minhas pernas, sair da minha alma, porque o meu coração já estava esfarrapado, inchado de solidão, e precisava transportar suas lamúrias para outro lugar. Expressões sem nexo vagavam dentro de minhas meias idéias e divagava comigo mesmo, como um moribundo louco que precisa de cuidados urgentes.
Parei por um segundo, para saber se ainda pulsava algo em mim. O vento soprava quente lá fora. O ar irrespirável e as árvores estavam lá, assim como as pessoas e seu cotidiano enfadonho e repetitivo, como os automóveis e o asfalto quente, como a impaciência e o cansaço. O sol fazia questão de rasgar os sentidos, como que para deixar claro que o excesso de luz cega rapidamente. E era um dia normal, o Universo seguia indiferente e distante, Deus continuava sem mostrar sua face, o absurdo espreitava a existência.
Naquela tarde, algo em mim lançou sobre o futuro a certeza de que não seria feliz. Que importa?! Que é felicidade, afinal? Estou ao redor de uma mesa de bar com poucos amigos e uma dose de álcool, com meus rabiscos e uma xícara de café ou com meus amores inconstantes, que terei a minha! Mas também, que significa isso? A minha prosa é torta e não sabe fazer curvas longas, e se escrevo assim é porque vivo de ilusões desmedidas.
O tempo passou errado e o sorriso que não dei perdeu-se no infinito.
Como ser quem sou se não sei onde vou nessa comum tarde, onde tudo segue igual ao nada?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

"Nada mais nos interessa
Sejamos indiferentes
Só nós dois, apenas dois,
Eternamente."

- Cartola

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Tentativa frustrada de falar sobre amor.

Não. Não vá ainda. Deixe estar mais um minuto ao meu lado para que possa terminar de matar essa urgência que tenho de teus caprichos descuidados. Eu poderia me perder nesse indefinido oceano que são os teus olhos, estudar a tua face, o teu sorriso de canto, e ter a certeza de que as estações do ano ficam em preto e branco se eu não ter os teus detalhes. Mas não. Eu só quero respirar a tua presença. Descobrir o significado de teus segredos, sempre tão escondidos por trás dessas expressões caladas e desconcertantes e saber porque elas estão sempre em minha memória, antes mesmo de eu querer pensar em você.
Não, não me deixe só, me ouça! Porque senão irá sentar ao meu lado, para nunca abandonar-me, a saudade aguda de teus costumes banais, de teus hábitos delicados, tuas doces minúcias. Chegue aqui perto e veja que não existe receio ou engano do lado de cá, apenas o meu amor do tamanho do mundo, tão intenso e fundo quanto a tua beleza fácil. Preciso que essas formas desatinadas de gostar de alguém estejam ao meu redor em um segundo, porque eu sei que depois você vai embora sem virar o rosto e me deixa sem saber o que fazer com os teus sinais. E eu terei de recolher meus sentimentos esmiuçados para poder me concertar mais uma vez.