domingo, 14 de outubro de 2012

Fragmento do intangível


Enquanto ainda irrompem lampejos de poesia
Há sangue nos altares de pedra
Existe fome nas avenidas
E encanto nas folhas que não desabam
Micro espetáculo de miudezas desimportantes

Corações corroem-se em misérias e egoísmos
Corpos desiludidos e expressões vagas
Copos vazios e mentes doentes
E miolos espalhados pelas paredes
Quando comprimidos não solucionam a incompreensão

Entulho nas arestas das horas
Desesperança no asfalto morno
Ápices inatingíveis e fossos inescapáveis
Panoramas ideados para pulverizar a solidão

Falsos esboços
Bolsos rasgados
Trocados miúdos
Refluxos estéreis do cotidiano
Sopros do tédio
Ruína dos anseios previstos

Máscaras que sufocam os fins
Mentiras abafadas no solo das ficções
Sussurros inaudíveis e renúncias estridentes
E abandono

Descrença no amanhecer
E delírio
E devaneio
E desassossego.

É improvável não sofrer no oscilar hipotético e indiferente do destino
A mais coerente das razões é ainda fragmento do intangível
E a súbita emoção, resplendor do inexistente.

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Retorno de Saturno

Para chegar até aqui, transfigurei os meus cenários e removi do arcabouço os destroços que me tragavam. Não restou muro branco para iniciar a conclusão daqueles colóquios baratos, porque o cansaço embebeda as repetições e grita mais alto ao pé do ouvido. Tudo ficou meio inconcluso, sem retóricas felizes, sem enredos claros ao fim. Sem que a imutabilidade das coisas reivindicasse o seu lícito direito de mudanças permanentes. Se não soube abrigar-me em desertos, tampouco encontrei refúgio na aglomeração. O retraimento desespera e a caravana agoniza. E diante de ausências e restos, revirei, distendi, vomitei os meus flagelos. Esquecido, pertencente aos efeitos da sombra e da abafante poeira, diante das deficiências amargas, doentes e indigestas do mundo que entendo mal. Bêbado, não do álcool que o corpo já acoplou às veias que saltam, mas da inalterabilidade, do habitual, de tudo aquilo que se repete sob a luz da eternidade e nos torna instintivo e selvagem. Com medo da imensidade do imponderável, mas desatento ante as consequências do que ainda não foi pronunciado, dos discursos que ainda não eclodiram e rebelaram almas que se rastejam, finadas.
Existe um momento, indefinível por essência, que conhece seu nascimento apenas em uma esfera margeada pela fantasia, em instantes que escapam a percepção e dificilmente são obtidos. É como uma faísca brilhante que de repente risca o ar e incendeia os espaços, da qual só vemos a projeção final e que a nossa imaginação teima em reinventar. Nesses milésimos, que procuramos em vão deter, sugar, costurar ao espírito, os versos não cabem, os êxtases não satisfazem e as juras não salvam. E é quando se faz preciso transcender as cercanias do previsível, do real, do indispensável. É preciso enxergar além do que permitem as retinas, mesmo quando a prudência e a paciência apontam inevitável derrota e conflito. Mesmo quando a esperança e a fé se esvanecem por entre as mãos, penetram na pele e no espectro, se perdem em esquinas desamparadas ou nos acalantos que não chegam para abrandar as fraquezas. Até quando o direito parece reverso e a nostalgia é ainda uma figura abstrata, há que se decompor, transtornar, interromper os avessos daquilo que ainda não sucedeu. É enxergar-se em libertação elevada, ainda que consciencioso da inumana alienação que nos prende, massacra e explode.  Por dentro e por fora.  Pelos lados, em rumos vagos.
Mas para tal, para fazer o quimérico renascer, o alegórico simbolizar, o extraordinário apoiar-se em fatos deprimidos que estabelecemos cegamente, tem-se que alumiar o pensamento e revisar os aforismos inexatos que cravamos durante o solitário e gélido crepúsculo. Afogar as convicções, esvaziar os conteúdos fechados, desumedecer as vidraças para descobrir que as janelas camuflam vestígios de vida, horizontes possíveis. Mas não quero reduzir a existência às margens do tangível, erguer o incluso em padrões cirúrgicos para serem manejados nas pontas dos dedos. Nem sequer posso ter essa pretensão, sobretudo através destas vazias notas que violam e descaracterizam a beleza do vento: ninguém vai salvar a humanidade dos teus tolos erros, dos tropeços que nos empurram ao precipício sem chão. Ainda assim, me assustam aqueles que escolhem morrer em doses contadas. 

“Mesmo este coração, que é o meu, ficar-me-á para sempre incompreensível.” Albert Camus – O mito de Sísifo.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Dois minutos dentro de um retrato escuro

Fotografias só servem para nos alertar que os dias residem os agoras. Mas já era velho o homem que olhava o porta-retrato nas mãos trêmulas e que já não sabia distinguir espaço-tempo em seu duro coração. "A vida me fez assim", profetizaria ele se acaso ainda soubesse falar. Lhe restava trancafiar as emoções dentro do peito ou expressá-las em gemidos incompreensíveis. A memória fraca camuflava as lembranças e as sinapses não tinham mais a mesma eficácia e rapidez. O raciocínio espalhava-se, falhava em suas intenções. encobrindo pelas manchas das recordações as décadas que tentava recitar em prosas mentais. O que hoje lhe remanescia, como um prato frio repleto de desencantos incolores e embaralhados, era um corpo cansado. E a comida sem sal no asilo abandonado. 
Não longe dali, na babilônia nossa expressa a cada estilhaço de recomeços e términos, dentro do manicômio dissimulado em que sobrevivemos, tudo parecia igualmente maquinal e infeliz: a mesma impaciência mórbida, como se a pobre existência de cada ser fosse conhecer seu fim no minuto seguinte, a mesma exaltação incompreensível, o mesmo simulacro de acenos repetitivos, o mesmo pedantismo dos diabos. Para escapar a esses vagos alvoroços, não adianta orar, clamar dentro de igrejas ou tabernas: nenhum deus sabe de nós, porque existem infinitudes concretas no Universo e somos nada. Ainda que esteja a rondar a cadeira de rodas do velho um anjo, esperando o seu último suspiro que teima em não chegar, como se a morte estivesse de greve.
É preciso imaginar-se lúcido em meio ao tormento para que haja luz nos amanhãs em que depositamos nossas desconfianças, para que vislumbremos contornos em nossos devaneios, ainda que embarcados em dúvidas. Por debaixo das nuvens escurecidas que ameaçam terminar em chuvas torrenciais, o antigo e o recente, o original e o ultrapassado, o surpreendente e o banal, são apenas centelhas de interpretações nossas, todas distorcidas, corrompidas por insanidades amontoadas pelas eras que nunca mudam.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Ainda que cotidiano, plenitude

Ainda que exausto pela maratona dos derradeiros dias, esvaído de rotinas prontas, apontei pelos frios corredores de paredes mofadas desse prédio velho, desci as mijadas escadas de concreto, abri o portão enferrujado e ouvi-o bater num estrondo atrás de mim. O sol açoitou minhas retinas, mais do que costumeiramente, talvez para avisar-me que a acolhedora penumbra conforta e abriga apenas em lacônicas estações. Enquanto buscava acostumar-me ao fulgor, amaldiçoei o fato de morar numa cidade onde o efeito entorpecente do calor incomoda tanto quanto o peso de existir. Esbarrei sem notar em pessoas durante o caminho que fazia até o boteco mais próximo, onde bêbados descarados e imundos já encontravam solução para o caos do mundo em seus incontáveis quinhões de aguardente. Cumprimentei alguns camaradas das infindáveis madrugadas, mas alguns deles não me reconheceram por exato; eram moribundos de todos os trejeitos, esfarrapados pela rejeição da massa, que frequentavam baiucas e santuários num resumido espaço de horas, sem compreenderem, contudo, que pecado e salvação andam sempre de mãos dadas. Troquei as garrafas de cerveja, peguei dois vinhos empoeirados na prateleira, um maço de cigarro da mais barata marca e pendurei a conta, hábitos mais do que frequentes nesses tempos duros. Mas o velho carrancudo e dono da espelunca desde antes de eu nascer, entendia a situação: mesmo com demora, conseguia sempre uns empréstimos para quitar o dividendo no final do mês. 
Durante os tramites no estabelecimento, dentro das cenas imagéticas que frequentam nossas mentes em colapso, refletia um pouco mais sobre a estupidez nossa de cada dia, tão manifesta que, a muitos, aparentemente, era difícil suportar ou querer admitir. Ainda antes de sair e retroceder ao terrível massacre luminoso que sem indulgência nos suprimia pausadamente, fragmentos epifânicos esboçaram resplandecer. Considerava engraçado e melancólico o fato de pessoas lidarem com algum contentamento com as obrigações de seus ofícios tediosos e alienantes, adularem àqueles que confessadamente não gostam, sorrirem por banalidades de toda ordem e ainda assim crerem nessa ilusão que mora em nós alcunhada felicidade. Não dá pra entender! Gente cretina e imbecil essa que me rodeia e mais inútil sou eu por não perceber tamanha incoerência! Espero com ânsia o dia em que o meu estado de embriaguez tome de vez as rédeas que norteiam a maneira pela qual vejo os contrassensos mundanos, pois assim verei denotações mais óbvias nos sinais, ao menos às vistas do meu pensar! Que grande merda isso também! Involuntariamente, sinto-me não pertencente a nenhuma confraria, não tenho inclinação para professar nenhum ideal nitidamente instituído e tudo o que me remete a expressão "moda", esterco que nutre essa sociedade nossa, me faz sentir aversão e ódio. Meus olhares cavos perfazem viagens discordantes que não fiz. Mas exaurido, não há resposta que sopre ao vento. No mais, sou como toda gente, fútil e egoísta, arruinado pelo cotidiano que nos dilacera, observante de horizontes submergidos pelas nuvens acinzentas.
Uma vez não desvendando respostas para estas controvérsias inatingíveis, acima de quaisquer soluções definitivas, ponderei ser melhor afogar interrogações em copos de álcool, costume corriqueiro para dar fim às ambiguidades que tremulam para além da apreensão humana.
Quando saí, tive a percepção de que o ar desvanecia, poluído como sempre e abafado como a muito não se via, munindo os passantes de zelos exagerados. Fiz o mesmo caminho da vinda, sem prestar atenção nas pessoas e blasfemando contra o desgosto que me causava a temperatura elevada. O peso da mercadoria trazida da tasca retardava meus passos, desengonçando o cursar. Pareceu-me que o trajeto de volta custou o triplo de desgaste e minutos.
Ao dobrar a esquina do prédio, já prestes a esquivar aos olhos da oscilação e do estorvo da inquietude, uma mortificante melancolia atropelou-me desprevenido, como que me coagindo a rememorar todas as vezes que percorri essas mesmas calçadas disformes, experimentando o ruído intolerável da existência fustigando-se por sobre os meus ombros e através de meus membros. Do outro lado da rua, uma criança suja mendigava ao lado de um homem de terno – O mundo é desgraçado e eu não presto! 
Uma tristeza funda ancorou-se sobre o meu peito e tive de espantá-la forçando o pensamento a visitar logo o quarto-banheiro estreito e bruno, onde imaginei Marcela, provavelmente preguiçosa, impaciente e despida, esperando-me sobre uns trapos esburacados. Ansiava por terminar de sugar seus fluidos, tocar-lhe a pele macia, frequentar suas regiões ardentes e suprimir as aflições da vida dentro de seus impetuosos enlaces e ósculos. A sensação de bem estar advinda dessas figuras maquinadas e que se tornariam autênticas e palpáveis dentro de abreviados instantes, acalmaram-me, e pude terminar a chegada até a choça com o espírito um tanto quanto tranquilo. Ri um riso fácil e alto com essa constatação, não sem antes intuir-me como louco e culpado pelos erros de outrem. Curiosamente, lascas arquetípicas configuravam-se sobre esses enleios carnais.
Novamente estava diante das escadas, do mau cheiro, do absurdo esforço de Sísifo. Andei até o final do corredor e abri a porta desgastada por mil anos - decorrência de batidas agoniadas desferidas após mil brigas minhas com Marcela, que solapavam o batente e arruinavam a maçaneta. Sem acender o interruptor, entre a claridade opaca que ingressava pelas fissuras das venezianas enodoadas, discerni um corpo de mulher que se agitava devagar. A resplandecência branda torneava as suas linhas agudas, reproduzindo de forma insonhável uma beleza impossível de abranger por luzes artificiais. Repassei todos os adeuses que não oferecemos depois de cada sorriso impelido, todos os pandemônios que criamos por caprichos enigmáticos, todos os descompassos que nos esfolavam no mais íntimo e sagrado. E pensei: Meu Deus, porque apartamos os dizeres, procrastinamos os anseios, negamos amores ressurgidos?!
Completando o panorama, o blues na vitrola ainda soava baixo, vertendo pelos cantos sua expressividade reentrante. Durante dez eternos segundos permaneci inerte, abstraído até da argúcia de ser. Mas as voltas mecânicas do relógio disfarçaram sortilégios e adequaram-se ao sumidouro da eternidade, ocasião suficiente para purificar o que de malfazejo arrastei da rua e entrever fatias ideadas de paraísos meus.  Depois, larguei os álcoois sobre a mesa antiga, em meio à latas vazias, tabacos apagados e esboços ordinários de prosas falsas, e fui juntar-me ao teu corpo para definitivamente espantar os fantasmas. Deitei e beijei-lhe o pescoço, abraçando-a pela cintura. O mundo principiava rodar sobre a cama que rangia. Nas horas subsequentes, nenhum mal poderia alcançar-me, nenhum demônio ávido em fazer de mim joguete para os teus próprios tormentos, transpassaria nossas almas que, vistas longinquamente, diriam ser uma só.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Quando se vê


Quando se vê, já não é amor. E ficamos assim. Percorrendo silentes desconfianças que nos apartam, diante de interrogações constituídas por erros que outrora urdíamos verdades indestrutíveis, concretas. Em lugar de antigas confirmações e insuspeitas, germinam medos que exprimem dúvidas resumidas em dizeres que não revelamos, becos estreitos arrebatados pela incompreensão arquitetada. Quando se vê, o pleno tornou-se metade antes de mobilizarmos as pálpebras, rematarmos os abraços e desenlaçarmos as mãos; e as árvores em que historiamos nossos modos, nomes e promessas, somente representam bosquejos de nós mesmos, simulações e escritas evasivas, lituras de inúteis ideais. Os trajetos inextricáveis que desenhamos são agora miragens, alucinações, crivos inexatos desses sonhos sem imediações. Sem atinar, deixamos rusgas através dos passos que nos uniam, palimpsestos que confundiam e desalinhavam o real sentido de nossos gestos que jamais soubemos concluir. 
Quando se vê, madrugadas e revelações, sorrisos e calores noturnos, semelham-se a aleatórios panoramas e perspectivas, emaranhadas por momentâneas necessidades e desleais aspirações. No relento que dilacera, sentado nos degraus em que já nos despedimos dos promissores dilúculos ou nas rochas em que acomodamos as vontades infantes, acompanha-me o meu violão. E eu invento um refrão embriagado para ritmar o que ficou de mim nesses desvãos da incongruência, nas entranhas da ansiedade. Longe de querer entender-te em tuas vicissitudes abstrusas, tampouco apresento o intento de esquecer-te por inteira, pois assim ausentar-se-iam pedaços ultimados do que me compõem e me dá relevo. Transcorrido a imprecisão dessa deforme conjuntura, fico a contemplar o horizonte que um dia batizamos de nosso, atravessando as passagens em que distei minha renúncia, para que se cerrem em definitivo as incondicionais veracidades e enclausure-se o alvorecer. Mas ao fundo dessas frestas abertas pela insensatez, prosseguirá o insulamento obstinado, ferido, cruel. E ao soprar das temporadas, vou desacostumando-me a atingir os sisos e admirar as paixões, vagando trôpego pelos desacordos da linearidade. 
Quando se vê, estamos cegos para o destino, já afeiçoado a pregar peças àqueles que imaginam significados nos sinais algures. Porém, ao desvanecer do dia, enxergando por ângulos distantes e recentes, as cores são outras e as sombras encobrem o passado em frangalhos. E o que fomos não é nada senão o revérbero fosco e triste do que poderíamos amar, a moldura gasta de um retrato sem ardor.

"E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te."
Mário Quintana

quarta-feira, 28 de março de 2012

Apesar de nós

A alma do homem está enraizada no estômago, disse uma vez Charles Bukowski. Antes do ocaso frívolo em que segredastes o teu adeus, não compreendia que tal afirmação poderia ser tão exata e cruel. Naquela fração de desalinho, cursaram minhas reminiscências versões sufocadas de nossa estória, paradoxos de todas as certezas que edifiquei ao longo destes anos. Na memória, cravaram-se retalhados desvirtuados de nossas palavras vãs. Juras que se abafaram ao léu, esvaziadas. Busquei, já sob o efeito consciente de não mais poder embarcar por entre os teus meandros, motivo razoável para descansar as dores sob a plenitude das constelações, subterfúgios para derramar a fugacidade dos instantes. Mas carecia de maiores empenhos para apreender o tamanho do vão que nascia em mim a partir de tua despedida. Um prélio entre o atilamento e o delírio teve início nos momentos próximos, sem que eu soubesse qual dos dois sairia mais perdedor.
As primeiras efígies que surgiram demarcavam salas desocupadas, esperas amotinadas, psiques agoniadas: pintei de preto e branco essas cenas e em todas elas projeções embaçadas de mim ganhavam função primordial. Aqueles segundos, absurdos e partidos, carregaram consigo meus lapsos de pretensões entorpecidas e com eles aprendi que é preciso saber quando convém dar as costas para o mar. Como um canto febril, os ares da razão puxavam-me à superfície, quase que obrigando-me a encostar as emoções em ângulos obtusos e cegos. A obviedade das circunstâncias banais somou-se ao impossível da ocasião e notei que os rios persistiriam em seus fluxos inconstantes, transcorrendo ora acomodados, ora irrequietos. Mas sempre apesar de nós.
No perímetro equidistante, deparava-me apenas com náuseas, ressacas de eras refletidas que assumiam outras formas e expressões. Ainda aturdido pela notícia da tua partida, o coração a retumbar resignado, não me atinei aos porvindouros vendavais, rotineiros nesses oblíquos movimentos que perfazem as álgidas alvoradas. Repercutia em algum lugar morno do horizonte imêmore, um alento debelado que me transpassava: perde estas ondas, recolhe os trapos estendidos na areia e deita fora o vinho barato. Não existe mais luau para combinar com teus olhos, não há canção que embale o que restou do meu pobre e vagabundo coração.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Dias que não são nossos

Foi apenas por um segundo. Sob os primeiros raios da manhã, em meio à revolução que acabara de dormir, eu te vi passar. Havia sangue seco nos imundos paralelepípedos e pilhas de entulhos nas portas das casas. As bodegas, horas antes ocupadas por velhos amarelados, bêbados e desiludidos, estavam com suas portas de aço fechadas, em sua maioria pichadas e rabiscadas com frases que clamavam alterações sociais. Eram ondas de protestos feitos por aqueles que muitos insistem em denominar baderneiros e vagabundos, mas que almejam mínimas doses de justiça e direitos para os seus iguais. Paredes gastas, sem reboco e tinta, escondiam seus riscos disformes, pois toda sorte de palavrões e ditos populares as enfeitavam. Ofegava-se estragos e pó abafadiço das calçadas, barafundas ininteligíveis e escandalizadas desabavam o restante da inocência nossa. Mas naquele segundo, que anulou o contraste com a imensurável e duvidosa eternidade, você serenou o cenário e fez-se luz a partir do teu sorriso, estrela mundana que és. Todavia, aparentou-me que teus contornos não eram tangíveis: despontavas feito quimera, alegoria hesitante para os meus desvarios, conforto para os desasseios e pavores. 
Antes mesmo de supor os resquícios do teu raso caminhar, ansiava por lhe oferecer as declarações de amor que nunca soube cunhar por completo. Neste meio tempo, experimentei abolir o que de extenso e indecifrável fazia morada em meus gestos e sinais. As estações desfilaram diante desse quadro, assenhoraram-se das brechas de concórdias passageiras e de tudo aquilo que acostumei a chamar de meu. E ressurgiram corriqueiras, insensíveis perante os desatinos. Notei que ausentava-se em meio à neblina desalumiada, fazendo despreocupada o teu trajeto regressado. 
Ao te ver passar, sumiram-se as ansiedades e os martírios: tua presença é como uma trégua diante da devastação, uma flor que emana sopros de amores benditos.
Sob os primeiros raios da manhã, em meio à revolução que acabara de dormir, eu te vi passar. Era equinócio, doces e abatidas lembranças embaçavam as obrigações do fronte e transgredir pareceu-me estúpido. Porque quando você surges em meio ao caos, tudo o mais desinteressa e a rebeldia serena. Alguns dirão que é um equívoco, ilusão egoísta. Não importa. Eu te vi passar e isto é razão suficiente para sucumbir à vida, afundar frustrações e esquecer esses tétricos dias que não são nossos.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Ecos de outrora

Ecos de outras eras me afogam e oprimem. Quando soam, assemelham-se a sussurros roucos e incoerentes, enredos tortos para os meus sintomas desacostumados a agitações externas. Mas quando me quieto e atento para eles, percebo que formam mantras que retumbam dentro do meu peito, pisando por sobre pequenas feridas que cicatrizaram pela metade. Parecem querer alertar-me de que estou sem prumo, isolado e desconexo em meio à multidão cinza e moribunda que me acerca. No cerne de seus lamentos e repetições, querem entender como cheguei ao ponto em que estou. Todos eles, suplicantes e magoados tais quais um fado português, são resquícios semimortos, episódios conturbados, avisos de meus desencontros. E os capto feito desilusões de períodos que não presenciei, como sonhos desmanchados de frias madrugadas. Com o intuito de não escutá-los, cubro os ouvidos, mas assim acabo por aguçar outros sentidos e enxergo mais do que deveria. Observo que estão fechadas as cortinas ao fundo e o vento não derrama mais sua ira sobre os espaços. Na penumbra lúgubre, objetos modificam seu lugar de origem, dançando trôpegos diante dos reflexos da escassa luz, mesmo sabendo eu que são consequências de minhas incertas retinas. Fragmentos incolores saturam minhas vistas, aqui dentro faz calor e é difícil sossegar. Recostado, entorno mais um sujo copo do amargo Fernet, que desliza pela garganta assolando as amígdalas: o mal estar já se instalou no estômago e preciso do álcool para sará-lo. E apenas os ecos continuam, adentrando minha precária privacidade e pregando-me à cadeira sem forro. No meio deles, arrisco meia dúzia de frases ordinárias, ditados conhecidos, letras imprecisas que desalinham e borram as sensações. Volto à atenção para a mesa rachada, lembranças efêmeras e faces conhecidas me atravessam, mas com elas não sei fazer poesia e sentir isso chega-me, ao seu modo, meio sem vida. Pro diabo com tudo isso! Não se pode dar vazão a nenhum pensamento nesse ambiente torturante! Deixo de lado papéis e evidentes loucuras, procurando encharcar esses imaginários sons com doses de tempos longínquos. E então, somo esforços para recordar quando foi a última vez em que vislumbrei fagulhas de significados, mesmo que por poucos segundos. Quando que, despreocupado e vacilante, estive a caminhar sem que acompanhasse-me a penúria dos dias sem volta? Não sei dizer, porque segundos e dias assim são como pergaminhos esquecidos na confusão da qual não sei escapar ou resistir. Ajuízo, por último, como é curioso o fato de nossas vagas escolhas se parecerem tanto com passos na areia, à beira mar: o formato dos pés finca na areia, desenhando o nosso passado. O mar, em sua grandeza inocente, brinca de desfazer, deformar e entortar a pisada original. Resta disso o que ponderamos compreender de nós mesmos.  E o mar avança, apaga o nosso trajeto, transmutando tudo na saudade do que de nós projetamos. Saudade do que não existiu, mas que queríamos, por uma inspiração divina ou uma danação de não sei onde, crer que sim.


"...procurando no ar fragmentos da minha existência espalhada" 
Graciliano Ramos - Angústia


"Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar"

Cartola

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Atemporalidade

"Há uma extraordinária multidão de gente assim no mundo, muito mais até do que a muitos possa parecer. Essa multidão pode, como toda a outra gente, ser dividida em duas classes: os de inteligência limitada e os de alcance mais vasto. Os primeiros são os mais felizes. Nada é mais fácil para essa gente "comum", de inteligência restrita, do que se imaginar original e mesmo exceção, e folgar com essa ilusão, nunca chegando a perceber o equívoco. Basta a muitas de nossas mocinhas cortarem o cabelo de certo modo e usarem óculos azuis e se cognominarem de niilistas, para ficarem de vez persuadidas de que, com isso só, obtiveram automaticamente "convicções" próprias. Basta a certos cavalheiros sentir o mais leve prurido de qualquer emoção bondosa e humanitária para que imediatamente fiquem persuadidos de que ninguém mais sente o que eles sentiram, e de que formam a vanguarda da cultura. Basta a certos indivíduos assimilar uma idéia expressa por outrem, ou ler qualquer página solta, para imediatamente acreditarem que essa é a sua opinião pessoal espontaneamente brotada de seu cérebro. A imprudência da simplicidade é, se assim se pode dizer, espantosa, em tais casos. Por mais incrível que pareça, isso existe."


Fiódor Mikhailovich Dostoiévski - O Idiota

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Atrás da Porta - Chico Buarque



Quando olhaste bem nos olhos meus
E o teu olhar era de adeus
Juro que não acreditei, eu te estranhei
Me debrucei sobre teu corpo e duvidei
E me arrastei e te arranhei
E me agarrei nos teus cabelos
No teu peito, teu pijama
Nos teus pés ao pé da cama
Sem carinho, sem coberta
No tapete atrás da porta
Reclamei baixinho
Dei pra maldizer o nosso lar
Pra sujar teu nome, te humilhar
E me vingar a qualquer preço
Te adorando pelo avesso
Pra mostrar que ainda sou tua