quarta-feira, 28 de março de 2012

Apesar de nós

A alma do homem está enraizada no estômago, disse uma vez Charles Bukowski. Antes do ocaso frívolo em que segredastes o teu adeus, não compreendia que tal afirmação poderia ser tão exata e cruel. Naquela fração de desalinho, cursaram minhas reminiscências versões sufocadas de nossa estória, paradoxos de todas as certezas que edifiquei ao longo destes anos. Na memória, cravaram-se retalhados desvirtuados de nossas palavras vãs. Juras que se abafaram ao léu, esvaziadas. Busquei, já sob o efeito consciente de não mais poder embarcar por entre os teus meandros, motivo razoável para descansar as dores sob a plenitude das constelações, subterfúgios para derramar a fugacidade dos instantes. Mas carecia de maiores empenhos para apreender o tamanho do vão que nascia em mim a partir de tua despedida. Um prélio entre o atilamento e o delírio teve início nos momentos próximos, sem que eu soubesse qual dos dois sairia mais perdedor.
As primeiras efígies que surgiram demarcavam salas desocupadas, esperas amotinadas, psiques agoniadas: pintei de preto e branco essas cenas e em todas elas projeções embaçadas de mim ganhavam função primordial. Aqueles segundos, absurdos e partidos, carregaram consigo meus lapsos de pretensões entorpecidas e com eles aprendi que é preciso saber quando convém dar as costas para o mar. Como um canto febril, os ares da razão puxavam-me à superfície, quase que obrigando-me a encostar as emoções em ângulos obtusos e cegos. A obviedade das circunstâncias banais somou-se ao impossível da ocasião e notei que os rios persistiriam em seus fluxos inconstantes, transcorrendo ora acomodados, ora irrequietos. Mas sempre apesar de nós.
No perímetro equidistante, deparava-me apenas com náuseas, ressacas de eras refletidas que assumiam outras formas e expressões. Ainda aturdido pela notícia da tua partida, o coração a retumbar resignado, não me atinei aos porvindouros vendavais, rotineiros nesses oblíquos movimentos que perfazem as álgidas alvoradas. Repercutia em algum lugar morno do horizonte imêmore, um alento debelado que me transpassava: perde estas ondas, recolhe os trapos estendidos na areia e deita fora o vinho barato. Não existe mais luau para combinar com teus olhos, não há canção que embale o que restou do meu pobre e vagabundo coração.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Dias que não são nossos

Foi apenas por um segundo. Sob os primeiros raios da manhã, em meio à revolução que acabara de dormir, eu te vi passar. Havia sangue seco nos imundos paralelepípedos e pilhas de entulhos nas portas das casas. As bodegas, horas antes ocupadas por velhos amarelados, bêbados e desiludidos, estavam com suas portas de aço fechadas, em sua maioria pichadas e rabiscadas com frases que clamavam alterações sociais. Eram ondas de protestos feitos por aqueles que muitos insistem em denominar baderneiros e vagabundos, mas que almejam mínimas doses de justiça e direitos para os seus iguais. Paredes gastas, sem reboco e tinta, escondiam seus riscos disformes, pois toda sorte de palavrões e ditos populares as enfeitavam. Ofegava-se estragos e pó abafadiço das calçadas, barafundas ininteligíveis e escandalizadas desabavam o restante da inocência nossa. Mas naquele segundo, que anulou o contraste com a imensurável e duvidosa eternidade, você serenou o cenário e fez-se luz a partir do teu sorriso, estrela mundana que és. Todavia, aparentou-me que teus contornos não eram tangíveis: despontavas feito quimera, alegoria hesitante para os meus desvarios, conforto para os desasseios e pavores. 
Antes mesmo de supor os resquícios do teu raso caminhar, ansiava por lhe oferecer as declarações de amor que nunca soube cunhar por completo. Neste meio tempo, experimentei abolir o que de extenso e indecifrável fazia morada em meus gestos e sinais. As estações desfilaram diante desse quadro, assenhoraram-se das brechas de concórdias passageiras e de tudo aquilo que acostumei a chamar de meu. E ressurgiram corriqueiras, insensíveis perante os desatinos. Notei que ausentava-se em meio à neblina desalumiada, fazendo despreocupada o teu trajeto regressado. 
Ao te ver passar, sumiram-se as ansiedades e os martírios: tua presença é como uma trégua diante da devastação, uma flor que emana sopros de amores benditos.
Sob os primeiros raios da manhã, em meio à revolução que acabara de dormir, eu te vi passar. Era equinócio, doces e abatidas lembranças embaçavam as obrigações do fronte e transgredir pareceu-me estúpido. Porque quando você surges em meio ao caos, tudo o mais desinteressa e a rebeldia serena. Alguns dirão que é um equívoco, ilusão egoísta. Não importa. Eu te vi passar e isto é razão suficiente para sucumbir à vida, afundar frustrações e esquecer esses tétricos dias que não são nossos.