quarta-feira, 25 de abril de 2012

Quando se vê


Quando se vê, já não é amor. E ficamos assim. Percorrendo silentes desconfianças que nos apartam, diante de interrogações constituídas por erros que outrora urdíamos verdades indestrutíveis, concretas. Em lugar de antigas confirmações e insuspeitas, germinam medos que exprimem dúvidas resumidas em dizeres que não revelamos, becos estreitos arrebatados pela incompreensão arquitetada. Quando se vê, o pleno tornou-se metade antes de mobilizarmos as pálpebras, rematarmos os abraços e desenlaçarmos as mãos; e as árvores em que historiamos nossos modos, nomes e promessas, somente representam bosquejos de nós mesmos, simulações e escritas evasivas, lituras de inúteis ideais. Os trajetos inextricáveis que desenhamos são agora miragens, alucinações, crivos inexatos desses sonhos sem imediações. Sem atinar, deixamos rusgas através dos passos que nos uniam, palimpsestos que confundiam e desalinhavam o real sentido de nossos gestos que jamais soubemos concluir. 
Quando se vê, madrugadas e revelações, sorrisos e calores noturnos, semelham-se a aleatórios panoramas e perspectivas, emaranhadas por momentâneas necessidades e desleais aspirações. No relento que dilacera, sentado nos degraus em que já nos despedimos dos promissores dilúculos ou nas rochas em que acomodamos as vontades infantes, acompanha-me o meu violão. E eu invento um refrão embriagado para ritmar o que ficou de mim nesses desvãos da incongruência, nas entranhas da ansiedade. Longe de querer entender-te em tuas vicissitudes abstrusas, tampouco apresento o intento de esquecer-te por inteira, pois assim ausentar-se-iam pedaços ultimados do que me compõem e me dá relevo. Transcorrido a imprecisão dessa deforme conjuntura, fico a contemplar o horizonte que um dia batizamos de nosso, atravessando as passagens em que distei minha renúncia, para que se cerrem em definitivo as incondicionais veracidades e enclausure-se o alvorecer. Mas ao fundo dessas frestas abertas pela insensatez, prosseguirá o insulamento obstinado, ferido, cruel. E ao soprar das temporadas, vou desacostumando-me a atingir os sisos e admirar as paixões, vagando trôpego pelos desacordos da linearidade. 
Quando se vê, estamos cegos para o destino, já afeiçoado a pregar peças àqueles que imaginam significados nos sinais algures. Porém, ao desvanecer do dia, enxergando por ângulos distantes e recentes, as cores são outras e as sombras encobrem o passado em frangalhos. E o que fomos não é nada senão o revérbero fosco e triste do que poderíamos amar, a moldura gasta de um retrato sem ardor.

"E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te."
Mário Quintana